Gosto bastante de histórias fantásticas, sejam elas sobrenaturais ou de ficção científica. Como boa parte das crianças de classe média dos anos 1980, assisti, mais de uma vez, a filmes como O Exorcista, A Profecia, Sexta-feira 13, A Hora do Pesadelo, Brinquedo Assassino, A volta dos mortos-vivos, E.T., A Mosca, Aracnofobia, O exterminador do Futuro, etc. Claro que tenho por todos os filmes citados – e por inúmeros outros negligenciados – aquele carinho que temos por tudo que faz parte de um passado feliz. Mesmo hoje, ao reassisti-los, me sinto reconfortado. Freud explica.
O processo de amadurecimento, contudo, não me tornou resistente apenas à lactose, mas também a filmes e séries que lidam com a ideia de viagem no tempo. Nos últimos anos, assisti à série Dark e a um monte de filmes e séries semelhantes. Meu veredito? Se pudesse, gostaria de voltar no tempo para não ter desperdiçado tantas horas preciosas tentando compreender o incompreensível.
Películas que apelam para a viagem temporal são extremamente confusas. Isto se dá não só porque boa parte de seus roteiristas tenta esconder sua inépcia sob uma narrativa propositadamente caótica (hoje, quanto menos um roteirista explica, mais é considerado genial), mas porque a própria ideia de viagem no tempo é um nonsense completo – ouso dizer, uma afronta à inteligência. Não gosto de ficções que lidam com a ideia de viagem temporal porque ela é impossível. E antes que me digam que brinquedos assassinos, mortos-vivos e homens que viram moscas também são impossíveis, me deixem explicar que há vários sentidos segundo os quais algo pode ser impossível – e que a impossibilidade destes últimos exemplos nada têm a ver com a impossibilidade da viagem no tempo.
Há, pelo menos, três tipos de impossibilidade: a linguística, a lógica e a factual. Do ponto de vista de um idioma, basta que não transgridamos nenhuma de suas regras ortográficas e sintáticas para que estejamos a salvo das impossibilidades que lhe são próprias. Desse modo, ainda que não devamos falar ou escrever coisas como “A Pablo mas ruim dois cantar”, estamos autorizados a grafar ou a proferir sentenças tais como “os crustáceos voam” e “assassinei minha progenitora dois anos antes de ela me dar à luz”. A gramática tem, sem dúvida, um coração de mãe.
A lógica, por sua vez, é mais restritiva que qualquer idioma. Para uma afirmação não incidir em impossibilidade lógica não basta que não desrespeite as regras gramaticais, mas ainda é necessário que não fira nem um dos princípios que alicerçam todos nossos raciocínios, tais como o princípio de identidade, o de não contradição, o de terceiro-excluído e o de causalidade.
O princípio de identidade garante, por exemplo, que eu sou eu e que João é João. O de não contradição reza que proposições tais como “eu existia antes de 1983” e “eu não existia antes de 1983” não podem ser simultaneamente verdadeiras ou simultaneamente falsas. O princípio de terceiro-excluído, por sua vez, afirma que qualquer proposição só pode ser verdadeira ou falsa, não havendo um estágio intermediário entre essas duas tipificações. O princípio de causalidade, por fim, garante que todo ente temporal (não-eterno) tem uma causa, já que nada pode surgir do nada.
Isto posto, se deve notar que tudo o que é lógico pode, em princípio, ser enunciado em qualquer idioma minimamente desenvolvido. Isto é válido até mesmo para as experiências místicas. A dificuldade que há em se traduzir tais experiências em palavras, creio eu, deve-se mais à sua raridade e singularidade do que a uma pretensa impossibilidade essencial. Se o contato com o divino fosse intrinsecamente inverbalizável, os filhos de Adão não teriam tomado conhecimento das conversas de seu pai com o Criador no poente do Éden.
Entretanto, se tudo que é lógico é linguisticamente viável, o contrário não é verdadeiro. Como já insinuei, as regras da gramática permitem a formulação de um sem-número de sentenças totalmente ilógicas. É precisamente aí que reside o bem conhecido poder hipnótico da linguagem. Muitos “paradoxos” da tradição filosófica não têm nada de paradoxal, não passando de formulações ilógicas não percebidas enquanto tais.
Um exemplo de formulação ilógica dessa espécie é a que subjaz ao questionamento retórico que, vez ou outra, surge na boca de algum sabichão, convencido de que, com uma simples pergunta, desmonta dois mil anos de teologia: Deus pode criar uma pedra que ele próprio não pode levantar? Ora, é claro que o Ser onipotente não pode criar uma tal pedra. Isto, contudo, não é indício de qualquer limitação factual do poder divino, mas tão somente o resultado de sua concordância com o princípio de não contradição. Ser onipotente é ser capaz de fazer tudo o que é logicamente possível – e não ser capaz de realizar qualquer maluquice passível de ser vertida em palavras, tal como exigem os insensatos.
Voltando às três sentenças formuladas acima, (a) “A Pablo mas ruim dois cantar”, (b) “os crustáceos voam” e (c) “assassinei minha progenitora dois anos antes de ela me dar à luz”, afirmo que (a) sequer pode ser analisada logicamente, já que não passa de um amontoado de termos. Por outro lado, sustento que (b) não é impossível do ponto de vista lógico, já que a ideia de os crustáceos conseguirem voar não envolve, em si, nenhuma contradição (o mesmo podendo ser dito, aliás, da existência dos homens-moscas, dos zumbis etc.). De fato, os camarões e as lagostas atuais poderiam ganhar os ares caso houvesse um grande adensamento da atmosfera terrestre ou, por algum motivo, começassem a secretar uma substância composta por partículas antigravitacionais.
Os crustáceos voadores, apesar de não ocorrerem na natureza (pelo menos, até onde sabemos) são, em si, possíveis – e é exatamente isso que os qualifica para serem personagens de uma narrativa fantástica. Toda história fantástica deve ocupar-se de acontecimentos que sejam logicamente possíveis e factualmente impossíveis ou, pelo menos, inauditos. Uma narrativa que se limita ao ordinário deve, por sua vez, ser considerada realista. Finalmente, uma narrativa enraizada no logicamente impossível não passa de um disparate.
Se assim é, para decidirmos se as histórias que têm por tônica a viagem temporal merecem direito de cidadania no reino da narrativa fantástica, precisamos analisar se (c) é logicamente possível. Vejamos. Primeiramente, a ideia de alguém voltar no tempo e matar sua progenitora antes que esta lhe dê à luz fere o princípio de causalidade: afinal, nesse caso, se o assassino não tem mãe, como teria vindo a existir? Uma vez que a causa (a progenitora) tivesse sido extinta antes de seu efeito (o filho), este só poderia ter surgido do nada, o que é logicamente impossível.
Ademais, a ideia de que alguém que nasceu em 1983 volte para o ano de 1981 fere o princípio de não contradição, pois, nesse caso, as proposições “fulano existia antes de 1983” e “fulano não existia antes de 1983” teriam que ser simultaneamente verdadeiras, o que é, uma vez mais, logicamente impossível. Poderia demonstrar também que a viagem no tempo fere o princípio de identidade e o de terceiro-excluído, mas não o farei porque basta que algo transgrida apenas um dos princípios da lógica para ser escorraçado do campo das possibilidades, do âmbito das coisas que fazem sentido.
Neste exato momento, o aficionado por viagens temporais talvez esteja se agarrando à esperança de que, ao menos do ponto de vista factual, elas seriam uma possibilidade. Ledo engano. E nem adianta tentar apelar para Einstein. A Teoria da Relatividade Especial, de 1905, permite, quando muito, que se afirme que, se um viajante saísse da Terra numa velocidade próxima à da luz, quando voltasse a nosso planeta, teria se passado muito mais tempo aqui do que em sua nave. Para ele, digamos, teriam se passado três anos, enquanto, para nós, teriam se passado trinta. Ora, isto, quando muito, do ponto de vista do astronauta, poderia se configurar como uma viagem no tempo para o futuro – estando, contudo, vetado, para ele e para nós, qualquer retorno ao passado.
Preciso confessar que a viagem no tempo nos moldes permitidos pela teoria da Relatividade sequer me parece uma real viagem no tempo, assemelhando-se mais a uma desaceleração dos processos físicos e químicos atinentes à nave e ao tripulante em questão. Além disso, note-se que, se essa “viagem no tempo”’ é factualmente possível, isto só ocorre porque ela não implica a infração de nenhum dos princípios da lógica acima listados. Deixo, no entanto, a cargo do leitor a tarefa de refletir e constatar a verdade desta minha última afirmação.
De resto, só dediquei dois parágrafos à análise do que diz a ciência sobre as viagens temporais por pura condescendência. Explico-me: a possibilidade factual encontra-se ontologicamente submetida à possibilidade lógica. Isto quer dizer que, ainda que nem tudo que é lógico tenha que ser realizável neste mundo, tudo o que é passível de se tornar fato tem, necessariamente, que obedecer à lógica. Sendo a lógica o âmbito das possibilidades metafísicas, ela recobre, por completo, o campo do factível – de modo que, uma vez que a lógica tenha impugnado alguma tese, sua realização se encontra absolutamente vetada.
Por tudo quanto disse, espero ter deixado claro que, independentemente de quantos roteiristas sofríveis sejam empilhados (incluindo-se, no monte, alguns cientistas incautos), a viagem no tempo continuará sendo apenas uma “viagem” – que, a meu ver, não merece nem ser elencada entre os temas da ficção científica. Uma das funções da arte é ampliar nosso imaginário, colocando-nos em contato com situações inusitadas: o que nada tem em comum com a opressão de nossa inteligência pela imposição do contrassenso, do absurdo radical tão caro a essas narrativas.
Fonte: Off Lattes