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Rock’n Roll e vivência religiosa

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Imagem: Largo do Paissandu visto da Galeria do Rock (MariliaKaz/Wikimedia Commons,2016)

Este texto é, sobretudo, uma nota biográfica. Falo aqui de minha adolescência tal como se deu na capital paulista, na segunda metade dos anos 1990. Com a exposição de minha experiência particular quero, no entanto, apontar para uma tese geral que, em poucas palavras, pode ser formulada como se segue: há vivência religiosa fora das religiões.

Os chatos (e talvez um pouco rasos) provavelmente dirão que me contradigo: uma vez que o adjetivo “religiosa” deriva de “religião”, como, na ausência desta última, poderia haver algo como uma vivência religiosa? O fato é que estamos lidando aqui com termos poéticos – ou, caso se queira, não científicos. Os termos científicos exigem a univocidade, ao passo que os poéticos evocam realidades que mantêm entre si tão somente uma relação de analogia: ou seja, uma relação que envolve, simultaneamente, identidade e diferença, tal como aquela que há entre as asas de uma águia e as de uma abelha.

Nesse sentido, o termo “religião” não pode, e nunca poderá, ser científico, já que denota realidades apenassimilares, aparentadas. As diferenças existentes entre, por exemplo, o budismo, o catolicismo, o candomblé e as crenças da Grécia Antiga são acachapantes, sendo que suas similitudes (inegáveis, é bem verdade) são mais superficiais que profundas – e, por vezes, mais sensíveis do que categorizáveis.

Ora, se o termo “religião” é vago, as expressões que dele derivam são, e só podem ser, polissêmicas. Assim, ouso tomar a expressão “vivência religiosa” como indicadora de um conjunto de experiências, em princípio reproduzíveis e minimamente sistematizáveis, capazes de moldar uma visão de mundo e doar sentido à opacidade do cotidiano. São experiências deste tipo: as peregrinações a lugares sagrados, a visita a templos, o alinhamento estético com os que compartilham da mesma cosmovisão, o “consumo” e a discussão de uma mensagem, o êxtase místico etc.

Duvido que alguém negue que elementos como os elencados acima não se fazem presentes, de um modo ou de outro, em todas as religiões. Contudo, meu intuito nas linhas que se seguem é demonstrar que tais elementos são identificáveis em outros ways of life que, num primeiro momento, nada teriam a ver com qualquer tradição religiosa – tal como é, certamente, o caso do way of life do Rock’n Roll.

Cursei o que hoje é chamado de ensino médio no Colégio João XXIII. Meus amigos e eu (um grupo de mais ou menos 10 adolescentes) mantivemos durante um bom tempo o hábito de, todas as sextas-feiras, peregrinar até a famigerada Galeria do Rock, localizada no centro de São Paulo, mais especificamente no número 439 da avenida São João, no Largo do Paissandu. O prédio da Galeria, tal como era carinhosamente conhecida por seus frequentadores, foi construído nos anos 1960, mas viria a se tornar o reduto do rock apenas nos anos 80. Praticamente tudo o que um roqueiro gostaria de ter podia ser lá encontrado: CDs de qualquer banda que se pudesse imaginar, revistas especializadas, camisetas pretas e/ou com palavras de ordem, coturnos, pulseiras, brincos, piercings, estúdios de tatuagem e otras cositas más…

Um passeio consumista para jovens esquisitos? Sim, mas também muito mais que isso. Ir para a Galeria à tarde era motivo para se acordar feliz antes das 7 da manhã, sobreviver às aulas de exatas, suportar com orgulho as provocações dos “populares” da escola e, finalmente, aguentar radiante a superlotação do ônibus Parque Dom Pedro II que nos levaria até o centro. Apesar de se erguer promiscuamente entre os prédios de uma vizinhança descuidada, a Galeria era um lugar sagrado, espiritualmente separado da cidade profana, agitada por preocupações que nada significavam para nós. Tão logo a víamos, éramos tomados por uma inquietação. Lá dentro, a sensação predominante era a de pertencimento: salvação temporária da Babel que, naqueles dias, teimava em dançar na boquinha da garrafa.

O Templo, quer dizer, a Galeria era dotada de uma arquitetura interessante, com poucas paredes e, portanto, com uma vista privilegiada. Visitávamos suas muitas lojas numa ordem precisa, para que nenhuma fosse negligenciada – tal como um devoto faz questão de se deter na frente de todas as imagens, não deixando de pagar seu tributo a cada uma delas. E, do mesmo modo que as diferentes divindades ou santos têm suas “especialidades”, as lojas da Galeria também tinham as suas: algumas eram especializadas em CDs de metal, outras em CDs góticos, outras em CDs punks, outras em CDs importados (trazidos sob encomenda), outras em CDs usados (uma pechincha!), outras em rock nacional, outras em indumentárias, outras em body modification e assim por diante. É claro que cada um de nós tinha os santos de sua devoção particular – os artistas e subgêneros preferidos – com os quais gastava mais tempo e dinheiro. Isso, no entanto, não anulava totalmente o apelo dos grupos e cantores que nos agradavam menos, já que todos e cada um, a seu modo, eram como tijolos que ajudavam a manter de pé aqueles muros que nos separavam do mundo insosso que nos sitiava.

Do ponto de vista prático, o segundo motivo mais importante para ir à Galeria era a compra de roupas e adereços – nossas “roupas de crente”. Sobretudo quando se é adolescente, o sentir-se diferente acaba se externando por meio de uma aparência voluntariamente incomum. No caso do roqueiro, como se sabe, tal aparência “alternativa” toma a forma dos já mencionados coturnos, pulseiras, brincos, piercings, tatuagens e camisetas de banda – estas últimas extremamente importantes para a identificação e a posterior socialização com os fiéis do mesmo breviário. Estar com camisetas da mesma banda – e, quiçá, do mesmo álbum – era meio caminho andado para um bate-papo divertido regado a cerveja, uma ida conjunta a um estúdio de ensaio (já que inúmeros roqueiros pelo menos “arranham” algum instrumento, ao qual têm um respeito mítico) e, no mais desejado dos casos, um intercurso amoroso. O que pode ser mais reconfortante do que descobrir, simplesmente com um olhar, que se está entre “irmãos”?

Se “ficar na moda” roqueira era muito importante (coisa que jamais confessaríamos à época, já que nos considerávamos absolutamente originais), o cerne e o motivo principal de nossa peregrinação semanal era adquirir algum álbum clássico, sem negligenciar o lançamento das novas pérolas: entrar em contato com o que os grandes homens do passado haviam dito e feito e não descuidar de nenhuma Boa-Nova – dado que, então, o rock era uma Revelação em aberto. Meus escritores sagrados preferidos eram David Bowie, Alice Cooper, Ozzy Osborne (Black Sabbath), Peter Murphy (Bauhaus), James Hetfield (Metallica), Kurt Cobain (Nirvana), Trent Reznor (Nine Inch Nails), Jonathan Davis (Korn), Peter Steele (Type O Negative), Till Lindemann (Rammstein) e, disparadamente em primeiro lugar, Marilyn Manson.

Para jovens com pouco mais do que quinze anos, que estavam longe de dominar o inglês, língua falada pela maioria desses patriarcas e profetas, os encartes eram essenciais no processo de decodificação da Mensagem. Eu, particularmente, passava horas a fio traduzindo as letras, com dicionário e lápis à mão – o que, por fim, acabou por me tornar proficiente na língua de meus heróis. Sei que tudo isso talvez seja inconcebível para quem já nasceu na era do Youtube, dos sites “letra de música” e do Google Tradutor, mas juro que essa era a realidade do século XX.

Os encartes eram nossas Escrituras. É obvio que a inaptidão da linguagem poética para oferecer uma visão de mundo total e acabada – somada ao fato de que, não raro, os artistas sustentavam posições antagônicas entre si – dificultava, em muito, minha tentativa de extrair dessa barafunda uma teoria minimamente coerente de como viver e de como morrer: preocupações fulcrais de todo homo religiosus. Algumas “lições”, no entanto, foram aprendidas. Diferentemente do que ocorreu com muitos de meus companheiros, o rock nunca me insuflou o desejo de mudar o mundo (bastante comum, por exemplo, entre os punks). Não por fruto de um raciocínio, mas em consequência de meu temperamento naturalmente cético e pessimista no que toca à natureza humana, sempre considerei o mundo “inapto para se curar” – como quinhentos anos antes de mim já havia lamentado Michel de Montaigne. Ao invés disso, o rock me legou o gosto por uma estética sombria (ainda estou por dimensionar o papel desse gosto na minha posterior conversão ao catolicismo, a mais sombria das religiões) e, principalmente, me legou uma filosofia de vida niilista “meia Schopenhauer, meia Nietzsche”, temperada com a tese do live fast, die young.

Ainda menores de idade, o que nos restava nos sábados à noite era nos encontrarmos na casa de algum dos amigos para comer, beber e… escutar música. Não posso reclamar: sempre fui cercado por pessoas inteligentes. Assim, nossas reuniões sempre acabavam em longos debates rabínicos sobre aquelas que nos pareciam ser as grandes questões do mundo. Tais discussões se afiguravam como situações ideais para colocar à prova as filosofias – ou, em muitos casos, os dogmas – que cada um tinha sorvido em suas “leituras”. E quando o pai em cuja residência se dava o encontro era liberal quanto a bebidas alcóolicas, o debate era ainda mais acalorado. As religiões anímicas não nos ensinaram que algumas substâncias podem nos colocar em contato com os mais altos mistérios divinos?

Por fim, no que diz respeito ao êxtase próprio a esse tipo de vivência religiosa, ele se dá, obviamente, à audição das canções. Não que a fruição da arte nos leve, em todos os casos, ao êxtase – mas, como Heidegger descreveu, às vezes, sem motivo aparente, o fazer artístico nos revela uma outra camada da realidade, frente à qual a contemplação e a escuta são as únicas atitudes possíveis. Tive – e, graças a Deus, ainda tenho – frequentemente experiências desse gênero, provocadas ou não pela música. São elas que fazem tudo valer a pena: são o ponto alto de qualquer vivência religiosa, de Gautama a Cioran, passando por santa Teresa D´Ávila. Há outras situações, claro está, que facilitam o êxtase do roqueiro, como casas noturnas temáticas (saúdo, de passagem, a inigualável Madame Satã) e os grandes shows, onde tudo propicia a transcendência; contudo, só fui ter acesso a essas situações privilegiadas anos mais tarde, já em posse do meu RG de adulto.

Termino aqui esta breve nota biográfica acreditando que o pouco que foi dito basta para demonstrar a verdade da tese proposta no primeiro parágrafo: é possível uma vivência religiosa fora das religiões. O ser humano é capaz de criar sistemas de sentido com, ou sem, o auxílio dos deuses. Agora, investigar se esses sistemas “laicos” possuem a mesma solidez, durabilidade e eficácia de seus concorrentes religiosos é algo que supera, em muito, o que aqui me propus. No fundo, só quis mostrar que, pelo menos durante algum tempo, é possível viver de Rock’n Roll.

Fonte: Off Latter

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